STF decide que foro por prerrogativa de função se mantém mesmo após o fim do mandato

Por Jefferson Freire

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento sobre o alcance do foro especial por prerrogativa de função, conhecido popularmente como foro privilegiado, para agentes públicos que deixam o cargo. Por maioria, a Corte fixou entendimento de que a prerrogativa se mantém mesmo após o afastamento, desde que os crimes investigados tenham sido cometidos durante o exercício da função e em razão dela.

A decisão reafirma o caráter institucional da prerrogativa de foro e revê parcialmente o entendimento firmado em 2018, quando o Supremo restringiu o benefício apenas a parlamentares em mandato e por fatos praticados no exercício das funções legislativas.

Prevaleceu o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, seguido pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luís Roberto Barroso e Kassio Nunes Marques. Ficaram vencidos André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia.

Contexto e histórico do debate

A discussão teve início em 2018, quando o STF, no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937, fixou que deputados e senadores só responderiam perante a Corte por crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício da função. Além disso, decidiu-se que, com o término do mandato, a competência retornaria à primeira instância, salvo se a instrução processual já estivesse concluída.

Essa orientação buscava conter o chamado foro privilegiado sem fim, reduzindo o número de autoridades processadas diretamente no Supremo. Ocorre que, na prática, a limitação temporal da prerrogativa acabou gerando insegurança e deslocamentos sucessivos de competência entre instâncias — cenário que motivou a rediscussão do tema.

O julgamento atual teve como casos paradigmáticos a ex-senadora Rose de Freitas (MDB), acusada de corrupção passiva, fraude em licitação, lavagem de dinheiro e organização criminosa, e o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), investigado por suposta prática de “rachadinha” em 2013, quando era deputado federal.

Gilmar Mendes: o foro é da função, não do tempo

Em voto minucioso, o relator ministro Gilmar Mendes defendeu que o foro especial deve ser mantido mesmo após o fim do exercício do cargo, desde que o delito tenha sido praticado no cargo e em razão dele. Para o ministro, o foro tem natureza institucional e funcional, e não meramente temporal.

Segundo ele, a jurisprudência de 2018 acabou subvertendo a finalidade da prerrogativa, pois “basta que o parlamentar não seja reeleito ou que o agente público se aposente para que seus atos sejam julgados em instância diversa, abrindo margem à instabilidade e a possíveis perseguições”.

Gilmar destacou que o foro existe para proteger o livre exercício das funções públicas, garantindo que autoridades possam agir “com brio e destemor” diante de decisões impopulares. Esse objetivo, segundo ele, não se desfaz com o término do mandato — ao contrário, “é justamente após o desligamento que o agente se torna mais vulnerável a retaliações políticas e perseguições”.

O relator também criticou a exceção criada em 2018, que mantém o foro apenas quando a instrução processual já estiver concluída, chamando-a de “remendo insuficiente”, incapaz de evitar as flutuações de competência que têm travado o andamento de processos.

Os casos que reacenderam o tema

O ministro relatou, como exemplo, o próprio caso do senador Zequinha Marinho, cujos autos transitaram por mais de uma década entre o STF, o STJ, o TRF da 1ª Região e juízos federais de diferentes estados, sem conclusão da instrução processual. “Esse andar trôpego é um retrato sem filtro dos prejuízos que podem ser gerados pelo entendimento atual”, pontuou.

Já no caso da ex-senadora Rose de Freitas, a defesa sustentava que os supostos crimes haviam sido praticados no exercício da função parlamentar, razão pela qual o foro especial deveria ser mantido mesmo após o término do mandato.

Para Gilmar Mendes, a interpretação correta deve levar em conta a natureza do crime funcional, e não a duração do cargo. “Se a diplomação não é suficiente, por si só, para atrair a competência do Supremo, o fim do mandato também não pode ser razão para afastá-la”, afirmou.

Divergências e votos vencidos

O ministro André Mendonça inaugurou a divergência, acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia. Para ele, a prerrogativa cessa com o término do mandato, pois está vinculada ao cargo, e não à pessoa.

Mendonça sustentou que manter o foro após o exercício da função “cria uma blindagem incompatível com o princípio republicano”, além de contrariar a linha jurisprudencial consolidada desde o Inquérito 687, de 2005.

Ele, contudo, propôs três exceções: (i) quando a denúncia já tiver sido oferecida antes da mudança de entendimento; (ii) quando a instrução estiver encerrada; e (iii) quando houver manifestação pelo arquivamento do inquérito.

Na mesma direção, o ministro Edson Fachin alertou que a ampliação do foro poderia transformar o Judiciário em “um poder arbitrário, desprovido de controles e distante do ideal de igualdade processual”. Já Cármen Lúcia reiterou que o foro “é da função, não da pessoa”, e que a proteção deve cessar com o cargo.

Recalibragem institucional

Ao encaminhar o caso diretamente ao Plenário, Gilmar Mendes reconheceu que a discussão tinha potencial para “recalibrar os contornos do foro especial”, especialmente após o recente envio ao STF das investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, em que a Polícia Federal apontou o deputado federal Chiquinho Brazão como um dos mandantes, embora o crime tenha ocorrido quando ele era vereador.

O relator destacou que a decisão desta semana não amplia privilégios pessoais, mas restaura a coerência funcional da prerrogativa, prevenindo manipulações processuais e evitando que réus utilizem a renúncia ou o término do mandato como estratégia para alterar o juízo competente.

Efeitos práticos e repercussões

Com a nova orientação, mantêm-se válidos todos os atos processuais já praticados sob a jurisprudência anterior. A aplicação será imediata, mas os processos em curso não precisarão ser reiniciados.

Na prática, a decisão tende a reduzir o número de declínios e remessas de autos entre instâncias, assegurando maior estabilidade à persecução penal de agentes públicos. Por outro lado, críticos da tese alertam para o risco de “eternização” do foro privilegiado, que poderia afastar da primeira instância processos de ex-autoridades por tempo indeterminado.

Síntese e significado constitucional

Ao final, o STF reafirma o foro por prerrogativa de função como garantia institucional, e não como privilégio pessoal. A decisão busca equilibrar dois valores constitucionais: a independência funcional das autoridades e a igualdade processual entre cidadãos.

Para a maioria, o foro não é um escudo de impunidade, mas uma salvaguarda necessária à estabilidade democrática e à preservação do livre exercício de funções públicas.

Inq 4.787
HC 232.627