STJ discutirá validade do espelhamento do WhatsApp: tecnologia, riscos e a urgência de uma tese vinculante

Com jurisprudência dividida, criminalistas alertam para manipulação, cadeia de custódia frágil e ausência de padrões técnicos na obtenção de provas por WhatsApp Web

O Superior Tribunal de Justiça deve, nos próximos meses, enfrentar um dos temas mais sensíveis da persecução penal na era digital: a validade jurídica das provas obtidas por espelhamento de aplicativos de mensagens, especialmente o WhatsApp Web.

A afetação do REsp 2.052.194 ao rito dos repetitivos indica que a corte pretende fixar uma tese vinculante para orientar todas as instâncias do Judiciário e uniformizar a atuação das autoridades investigativas. Até que isso ocorra, porém, o cenário é de profunda divergência entre as turmas criminais.

O espelhamento ocorre quando, mediante leitura de um código QR, um dispositivo controlado pela polícia é pareado ao WhatsApp do investigado. A partir desse vínculo silencioso, que não gera notificação ao usuário, os agentes passam a ter acesso não apenas às mensagens pretéritas, mas também a todas as comunicações futuras.

O espelhamento permite ainda enviar, editar e apagar mensagens sem qualquer registro ou trilha de auditoria no aplicativo, no dispositivo ou nos servidores da empresa. Para criminalistas, trata-se de um campo fértil para abusos, adulterações e distorções probatórias.

A 6ª Turma do STJ já declarou ilícitas provas obtidas dessa maneira em duas oportunidades (2018 e 2021). No emblemático RHC 99.735, o colegiado ressaltou que a ferramenta possibilita intervenção ativa da autoridade e permite a supressão de mensagens “com total liberdade”, sem deixar vestígios detectáveis. Isso, afirmaram os ministros, torna impossível ao acusado demonstrar eventual manipulação, configurando uma típica “prova diabólica”, cuja demonstração depende de fato negativo e tecnicamente irremediável.

O entendimento, porém, não é unânime. Em 2024, a 5ª Turma adotou posição distinta e considerou válido o espelhamento como técnica especial de investigação, desde que haja autorização judicial, proporcionalidade, fundamentação adequada e controle jurisdicional.

O colegiado chegou a dispensar perícia de autenticidade, afirmando que as mensagens enviadas por policiais presumem-se válidas por conta da fé pública dos agentes. A divergência entre as turmas motivou a afetação do recurso especial à Terceira Seção, que agora deverá arbitrar o conflito.

A comparação com a interceptação telefônica tradicional evidencia o problema. Enquanto o “grampo” previsto na Lei 9.296/1996 captura apenas comunicações em trânsito, dentro de um fluxo controlável e com registros verificáveis, o espelhamento concede acesso a um acervo muito mais amplo: histórico completo de conversas, arquivos, fotos, documentos e contatos armazenados.

Além disso, diferentemente da interceptação telefônica, operação tecnicamente auditável, com logs e limites temporais, o espelhamento não produz hashes, não gera metadados confiáveis e não delimita o universo de dados coletados. O resultado é um ambiente de absoluta insegurança probatória.

O REsp 2.052.194, submetido à sistemática dos repetitivos, busca justamente enfrentar esse dilema: é possível considerar lícita a prova telemática obtida por espelhamento de aplicativo de mensagens? E, se possível, em quais condições mínimas?

A Terceira Seção deverá estabelecer parâmetros capazes de conciliar eficiência investigativa, proteção à cadeia de custódia, segurança jurídica e tutela da privacidade.

Na era da comunicação criptografada, a persecução penal enfrenta desafios inéditos. Entretanto, a solução não pode ser uma técnica que, por sua própria natureza, impede a verificação da autenticidade do conteúdo captado. Sem integridade, não há prova; sem auditabilidade, não há controle jurisdicional; sem transparência técnica, não há segurança jurídica.

Qualquer tese que o STJ venha a fixar precisará reconhecer que a prova digital exige rigor científico, documentação completa e rastreabilidade integral, sob pena de fragilizar o processo penal e comprometer a própria legitimidade da atividade investigativa.

REsp 2.052.194