Quando o Banco Central do Brasil editou a Circular nº 3.461, em 24 de julho de 2009, o objetivo era claro: consolidar as regras de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo no âmbito das instituições financeiras e demais entidades por ele autorizadas.
Tomando como base a Lei nº 9.613/1998, a Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo e a própria Lei nº 4.595/1964, a norma reposicionou o sistema financeiro como protagonista na detecção de operações suspeitas, transformando o antigo “dever de cuidado” em um verdadeiro dever de vigilância organizada, com políticas internas, procedimentos, registros e comunicações obrigatórias.
O ponto de partida da Circular é o seu art. 1º, que exige das instituições a implementação de políticas, procedimentos e controles internos compatíveis com seu porte e volume de operações, destinados a evitar o uso do sistema na prática dos crimes previstos na Lei nº 9.613/1998.
Não basta mais ter um cadastro formal e sistemas rudimentares de registro: o Banco Central exige que cada instituição saiba quem é o cliente, o que ele faz, quanto movimenta, por que se relaciona com a instituição e de onde vêm os recursos que utiliza.
A norma, alterada posteriormente por outras circulares, detalhou que essas políticas devem indicar responsabilidades por nível hierárquico, prever análise prévia de novos produtos e serviços, tratar de seleção e acompanhamento de empregados e ser aprovadas pela alta administração, com ampla divulgação interna.
A mensagem é inequívoca: prevenção à lavagem de dinheiro deixou de ser um assunto restrito ao jurídico e passou a ser um tema de governança.
No plano operacional, a Circular 3.461 consolida a lógica do “conheça seu cliente” (KYC). As instituições são obrigadas a coletar e manter atualizadas informações cadastrais de clientes permanentes, abrangendo qualificação completa, endereços, telefones, renda e patrimônio, faturamento, natureza da relação de negócios e, no caso de pessoas jurídicas, a cadeia societária até alcançar o beneficiário final.
Para fundos de investimento, o normativo impõe a identificação da denominação, CNPJ e dos responsáveis pela administração. A norma não se limita ao momento de abertura da conta: determina que as instituições realizem testes periódicos, ao menos anuais, para verificar a adequação desses dados, evitando que cadastros desatualizados se tornem brechas para estruturas de ocultação patrimonial.
O tratamento dado aos chamados clientes eventuais também é relevante. Ainda que a Circular admita, em situações de baixo risco, a dispensa de algumas informações cadastrais, permanece o dever de estruturar procedimentos internos capazes de identificar serviços ou operações que não apresentem risco relevante de lavagem ou financiamento ao terrorismo. Em outras palavras, a flexibilização é pontual e condicionada: não se trata de liberar operações “no escuro”, mas de permitir calibração do nível de diligência conforme a exposição ao risco.
Um dos eixos centrais da Circular 3.461 é a disciplina das Pessoas Expostas Politicamente (PEP). A norma exige que as instituições obtenham informações que permitam caracterizar ou não o cliente como PEP e identificar a origem dos fundos envolvidos nas transações dessas pessoas. O conceito abrange agentes públicos que exerçam ou tenham exercido, nos últimos cinco anos, cargos ou funções relevantes no Brasil ou no exterior, bem como seus representantes, familiares e pessoas de relacionamento próximo.
A lista exemplificativa inclui titulares de mandatos eletivos, ministros, altos cargos do Executivo, membros de tribunais, do Ministério Público, de tribunais de contas, governadores, prefeitos de capitais e dirigentes de empresas públicas, além de pessoas em posições de alta administração em organizações internacionais.
No caso de clientes estrangeiros, a Circular autoriza o uso de declarações, bases públicas e bancos de dados comerciais para a identificação, tomando como referência as recomendações do Gafi (FATF). Ao qualificar operações com PEP como merecedoras de “especial atenção”, o Banco Central reforça o dever de monitoramento reforçado e de avaliação da alta gestão sobre a conveniência de iniciar ou manter esse tipo de relacionamento.
Em paralelo, a norma organiza um robusto sistema de registros e monitoramento das operações financeiras, que serve de base para as comunicações obrigatórias ao Coaf. Os arts. 6º a 9º disciplinam o registro de serviços financeiros, transferências, depósitos, cheques, DOCs, TEDs, cartões pré-pagos e operações em espécie, com foco não apenas em valores absolutos, mas também em padrões de movimentação que possam indicar fracionamento, artificialidade ou ausência de fundamento econômico ou legal.
A Circular obriga as instituições a manter registros que permitam verificar a compatibilidade entre movimentação e capacidade financeira do cliente, a origem dos recursos e os beneficiários finais das movimentações. Essa lógica antecipa a ideia de perfil transacional, tão mencionada hoje em compliance bancário.
Chama atenção o tratamento dado a operações com recursos em espécie e cartões pré-pagos, considerados vetores sensíveis para lavagem de dinheiro.
A Circular fixa limiares para registros específicos, reduzidos em 2017, e exige que as instituições identifiquem, para saques e pagamentos em espécie de maior valor, o proprietário ou beneficiário, a origem dos fundos, a finalidade da operação e os dados das contas envolvidas.
Saques e pagamentos em espécie, por exemplo, passaram a demandar comunicação prévia, com emissão de protocolo e registro detalhado das informações, além de comunicação ao Coaf em situações específicas.
Da mesma forma, as emissões ou recargas de cartões pré-pagos em valores elevados, ou que apresentem indícios de ocultação ou dissimulação, devem ser identificadas e registradas com amplo detalhamento.
Na prática, a Circular converteu o dinheiro em espécie e os cartões pré-pagos em “alertas naturais” dentro dos sistemas de monitoramento.
O regime de “especial atenção” previsto no art. 10 funciona como filtro qualitativo. As instituições são obrigadas a olhar com mais cuidado operações que: não apresentem fundamento econômico ou legal aparente; envolvam PEP; indiquem tentativa de burla a procedimentos de identificação; impossibilitem identificar o beneficiário final; ou estejam vinculadas a países que apliquem insuficientemente as recomendações do Gafi.
A expressão “especial atenção” não é retórica: inclui monitoramento contínuo reforçado, análise orientada à comunicação ao Coaf e avaliação da alta direção quanto à conveniência de manter o relacionamento.
A mensagem implícita é de que, em determinados contextos, a decisão de “não operar” com determinado cliente é, ela própria, uma medida de integridade do sistema.
Outro ponto estruturante diz respeito à manutenção de informações e registros ao longo do tempo. A Circular estabelece prazos mínimos de guarda que variam entre cinco e dez anos, contados a partir do término da relação com o cliente ou da conclusão da operação, abrangendo tanto os dados cadastrais quanto os registros transacionais.
Exige, ainda, que as informações cadastrais sejam acompanhadas do nome da pessoa responsável pela atualização, do gerente que conferiu os dados e da data de início do relacionamento. Isso reforça a rastreabilidade interna e permite, em investigações posteriores, reconstruir não só o histórico do cliente, mas também a atuação da própria instituição na gestão daquele relacionamento.
No núcleo da engrenagem está o regime de comunicações obrigatórias ao Coaf. A Circular detalha duas grandes categorias: (a) comunicações automáticas baseadas em critérios objetivos de valor e natureza da operação (como grandes operações em espécie, uso de cartões pré-pagos em montantes elevados e determinados tipos de transferência); e (b) comunicações de operações suspeitas, independentemente de valor, quando houver indícios de lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo, burla a controles ou envolvimento de pessoas reconhecidamente vinculadas a atos terroristas.
A norma é clara ao vedar que o cliente ou terceiros sejam informados sobre essas comunicações, preservando o caráter sigiloso da atuação do Coaf. Também exige que instituições que nada comunicaram em determinado ano declarem tal circunstância por meio do Siscoaf, transformando o silêncio em informação relevante de supervisão.
Para que tudo isso não se converta em mera formalidade documental, a Circular 3.461 exige a existência de procedimentos internos de controle e governança. As instituições devem indicar diretor responsável pela implementação das medidas e pelas comunicações ao Coaf; adequar seus sistemas à legislação sobre sanções do Conselho de Segurança da ONU, com identificação e bloqueio de bens de clientes sujeitos a ações de indisponibilidade relacionadas ao terrorismo; e manter, por cinco anos, a documentação que justifique a decisão de comunicar ou não determinada operação.
O Banco Central, por sua vez, compromete-se a divulgar operações e situações típicas de risco, bem como orientações sobre procedimentos de comunicação.
Ainda que parte de seus dispositivos tenha sido posteriormente alterada, complementada ou revogada por normas mais recentes, a Circular nº 3.461/2009 representou um marco de maturidade regulatória na prevenção à lavagem de dinheiro no sistema financeiro brasileiro. Ela consolidou a visão de que combate a ilícitos financeiros não se faz apenas com rastreamento ex post, mas com compliance estruturado, identificação de clientes, monitoramento inteligente, guarda de registros e cooperação ativa com o Coaf.
Em última análise, transformou o banco em protagonista regulado de uma linha de frente que envolve não só o sistema financeiro, mas a própria credibilidade do Estado na prevenção e repressão a crimes econômicos complexos.