A Lei 15.272/2025 e os novos parâmetros da prisão preventiva: entre a densificação normativa e os riscos de automatismo judicial

Nova legislação altera o CPP, redefine circunstâncias de conversão do flagrante, cria regime de coleta biológica e positivação de critérios de periculosidade

A sanção presidencial da Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025, inaugura um dos mais extensos rearranjos normativos no sistema de cautelares penais desde o “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/2019).

O diploma altera o Código de Processo Penal (CPP) para estabelecer circunstâncias que recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva (artigo 310, §§ 5º e 6º), fixa parâmetros de aferição da periculosidade (artigo 312, §§ 3º e 4º) e cria um regime próprio de coleta de material biológico na audiência de custódia (artigo 310-A).

Com isso, o legislador busca fornecer balizas formais à atuação judicial, respondendo a críticas quanto ao uso de fórmulas genéricas e à insuficiência de motivação concreta nas decisões cautelares.

A proposta originou-se no Senado Federal, de iniciativa do então senador Flávio Dino, que justificou a necessidade de conferir objetividade às análises típicas da audiência de custódia, reduzindo o espaço de discricionariedade judicial e estimulando decisões densamente fundamentadas.

A Câmara dos Deputados aprovou um Substitutivo, mas a versão final do projeto, consolidada pelo relator, senador Sergio Moro, no Parecer nº 151/2025, restaurou quase integralmente o texto original do Senado, com ajustes pontuais de redação.

Encaminhado ao Executivo, o projeto recebeu sanção presidencial sem vetos.

Um dos pontos centrais da reforma reside no novo § 5º do artigo 310, que elenca circunstâncias indiciárias que “recomendam” a conversão da prisão em flagrante em preventiva: reiteração delitiva, violência ou grave ameaça, prévia soltura em audiência de custódia, pendência de inquérito ou ação penal, fuga ou risco de fuga e perigo à prova.

À primeira vista, o rol amplia a densidade normativa da análise judicial; entretanto, a natureza meramente indiciária dessas hipóteses exige cautela. Em uma estrutura processual acusatória, nenhuma dessas circunstâncias opera como presunção automática, tampouco como inversão do ônus argumentativo.

A conversão somente se legitima quando houver demonstração concreta de periculum libertatis contemporâneo, não contornável pelos meios alternativos previstos no artigo 319 do CPP.

A liberdade permanece como regra constitucional (artigo 5º, LXI, LXV e LXVI), e o encarceramento cautelar, como exceção.

O novo § 6º do artigo 310 reforça essa exigência ao impor ao magistrado o exame obrigatório, motivado e fundamentado, das circunstâncias dos §§ 2º e 5º, em diálogo com os critérios de periculosidade previstos no artigo 312, § 3º.

Desautoriza-se, portanto, qualquer leitura que transforme o § 5º em um checklist automático. A decisão deve explicitar a relação entre fatos, riscos atuais e inadequação das medidas cautelares diversas da prisão, observando o teste de adequação, necessidade e proporcionalidade.

Trata-se de postura consonante com a proibição da decretação ou conversão de ofício, reafirmada após o Pacote Anticrime, e com a crítica doutrinária à atuação judicial que suplanta as funções próprias da acusação.

Entretanto, o novo regime não está imune a controvérsias. A previsão de “reiteração delitiva”, por exemplo, não se satisfaz com menção a números ou registros pretéritos; exige elementos verificáveis que apontem para risco concreto e atual.

A mera “pendência de inquérito ou ação penal” não autoriza presunção de periculosidade, sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência.

Do mesmo modo, o fato de o crime envolver violência contra a pessoa não dispensa o exame de adequação de medidas substitutivas. O “risco à prova” exige a identificação de quais elementos probatórios estariam vulneráveis e por que mecanismos menos gravosos não protegeriam adequadamente a instrução.

Ainda mais sensível é a positivação dos critérios de periculosidade no § 3º do artigo 312, que prevê: análise do modus operandi (incluindo premeditação e violência reiterada), eventual vínculo com organização criminosa, natureza/quantidade/variedade de armas, munições ou drogas apreendidas e fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos ou ações penais.

À primeira vista, esses parâmetros parecem oferecer maior densidade normativa à noção, historicamente problemática, de “ordem pública”. Porém, sem uma ponte de evidências que conecte cada dado à ocorrência de risco concreto e contemporâneo, esses critérios se reduzem a etiquetas que apenas reforçam a retórica da gravidade em abstrato por vias indiretas.

O risco é que “premeditação”, “vínculo com organização criminosa” ou “fundado receio de reiteração” funcionem como atalhos argumentativos, em colisão com a exigência de análise individualizada e com a proibição de presunções derivadas do status processual do investigado.

No mesmo movimento, a lei inaugura o artigo 310-A, determinando que o Ministério Público ou a autoridade policial requeira a coleta de material biológico nos casos de flagrante envolvendo crimes violentos contra a pessoa, crimes contra a dignidade sexual, crimes hediondos ou crimes praticados por agentes com indícios de integração em organizações criminosas armadas.

A coleta deve ocorrer preferencialmente na audiência de custódia ou no prazo de dez dias, respeitando-se integralmente a cadeia de custódia e os protocolos da perícia oficial. Embora anuncie maior efetividade investigativa, a medida também suscita debates constitucionais sobre autodeterminação informativa, proporcionalidade e limites da intervenção estatal sobre o corpo do custodiado.

Em conjunto, as alterações representam esforço de densificação legislativa, mas também carregam riscos evidentes. A positivação de critérios não elimina a necessidade de fundamentação qualificada nem a exigência de demonstrar por que a liberdade, acompanhada de medidas cautelares alternativas, não seria suficiente.

O processo penal permanece vinculado ao paradigma constitucional e convencional, que impõe contenção, racionalidade e excepcionalidade às medidas cautelares prisionais. O desafio da comunidade jurídica será impedir que a nova lei, a pretexto de conferir objetividade, legitime automatismos que esvaziem o controle judicial e ampliem a margem de encarceramento preventivo.

Lei nº 15.272, de 26 de novembro de 2025