Banco Central, COAF e o rastreamento ampliado: como padrões de movimentação financeira acionam alertas e podem configurar indícios de lavagem de dinheiro

A Carta-Circular nº 3.542/2012 do Banco Central e os parâmetros oficiais usados por bancos para comunicar operações suspeitas ao COAF

A Lei nº 9.613/1998, que disciplina os crimes de lavagem de dinheiro e cria o sistema brasileiro de prevenção, ganha concretude no dia a dia a partir de atos normativos dirigidos às instituições financeiras. Entre eles, destaca-se a Carta-Circular nº 3.542/2012 expedida pelo Banco Central que lista, de forma minuciosa, operações e situações que, consideradas as partes envolvidas, os valores, a frequência, a forma de realização e a ausência de fundamento econômico ou legal, podem configurar indícios de crimes financeiros e, por isso, devem ser comunicadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Trata-se, em essência, de um verdadeiro “checklist operacional” para bancos, fintechs e demais entidades autorizadas, que orienta tanto a programação de sistemas de monitoramento quanto a atuação de áreas de compliance.

O primeiro bloco de atenção recai sobre as operações em espécie em moeda nacional, historicamente associadas à tentativa de afastar o rastreio eletrônico. Entram na lista depósitos, saques e provisões em dinheiro vivo que destoem do perfil econômico do cliente; movimentos em espécie praticados por quem, normalmente, usa meios eletrônicos; aumentos repentinos e sem causa aparente no volume de numerário depositado, sobretudo quando os recursos são rapidamente transferidos a terceiros sem relação aparente com o titular.

Fragmentar depósitos para dissimular o valor total, parcelar grandes quantias em caixas automáticos próximos, concentrar operações em regiões de maior risco ou de fronteira e movimentar dinheiro em contas ligadas ao comércio de bens de luxo também são sinais de alerta.

Até mesmo o estado físico das cédulas, úmidas, mofadas, malcheirosas ou marcadas, por exemplo, e a troca de grandes quantidades de notas de pequeno valor por pessoas que, em tese, não lidam com caixa intenso podem ser interpretados como indícios de irregularidade.

As operações em espécie em moeda estrangeira e cheques de viagem compõem um segundo grupo sensível. A norma orienta a observar movimentações em dólar ou outras moedas incompatíveis com a renda do cliente, negociações em regiões de fronteira que não se coadunem com a justificativa apresentada e uso reiterado de cheques de viagem ou moeda física por diferentes pessoas com o mesmo endereço.

Também desperta suspeita o recebimento de valores, em espécie, por residentes no exterior que estejam apenas de passagem pelo País, quando não haja propósito claro que justifique a transação.

Um terceiro eixo de monitoramento diz respeito aos dados cadastrais e à própria relação do cliente com a instituição. Resistência em fornecer informações, apresentação de dados falsos ou de difícil verificação, uso recorrente de procuradores, abertura simultânea de diversas contas com elementos em comum (mesmo endereço, telefone, sócios, procuradores) e impossibilidade de identificar o beneficiário final da operação são situações que, para o Banco Central, exigem atenção redobrada.

A indicação do mesmo endereço por várias empresas ou pessoas físicas sem relação aparente, bem como a discrepância entre faturamento declarado e padrão de movimentação frente a clientes com perfil semelhante, também entram na conta.

No campo da movimentação de contas, o rol de hipóteses é amplo. A regulamentação manda olhar para transações incompatíveis com patrimônio e renda, transferências recorrentes em valores “arredondados” ou logo abaixo de limites de reporte, movimentação de alto valor em favor de terceiros, manutenção de diversas contas para receber depósitos que, somados, alcançam montante expressivo e mudança abrupta no padrão de uso da conta, seja pelo aumento repentino, seja pela súbita paralisação de operações antes intensas.

Utilização atípica de cofres de aluguel, renúncia injustificada a benefícios como juros sobre grandes saldos, compras imediatas de instrumentos de pagamento logo após o crédito de recursos e transações desenhadas para ocultar origem, destino ou beneficiário real completam o quadro.

Pagamentos a fornecedores sem ligação com o ramo de atividade, remessas a regiões distantes sem justificativa econômica, contas de organizações sem fins lucrativos com movimentações destoantes e operações envolvendo pessoas politicamente expostas ou menores de idade, por meio de representantes, aparecem como exemplos de risco adicional.

O texto ainda se debruça sobre investimentos e produtos financeiros. Operações com títulos e valores mobiliários a preços muito acima ou abaixo do mercado, investimentos significativos em produtos de baixa liquidez e rentabilidade, aportes incompatíveis com a capacidade financeira do cliente e resgates em curtíssimo prazo, independentemente do resultado, são elencados como sinais potenciais de lavagem.

No mesmo sentido, o uso de cartões de pagamento é monitorado quando há carga ou recarga em valor incompatível com o perfil econômico, múltiplos saques em localidades diversas em curto período de tempo, uso fora dos padrões do cliente, inclusive em outros países, e recargas alimentadas por diversas fontes, seguidas de saque quase imediato.

As operações de crédito no País também não escapam ao radar. A liquidação de empréstimos com recursos incompatíveis com a situação do tomador, pedidos de crédito descolados da atividade exercida, contratação de empréstimo seguida de remessa de dinheiro ao exterior sem relação com a operação, liquidação antecipada em prazo muito curto, pagamento de dívidas por terceiros sem justificativa, garantias oferecidas por pessoas sem vínculo com o devedor ou por meio de bens situados no exterior, bem como a aquisição de bens ou serviços alheios ao objeto social da empresa com recursos de crédito bancário são situações que podem ensejar comunicação.

Quando há recursos oriundos de contratos com o setor público, o olhar regulatório torna-se ainda mais atento. Movimentações atípicas por agentes públicos, por pessoas ou empresas ligadas a patrocínio, marketing, consultorias e capacitação, por organizações sem fins lucrativos e por participantes de licitações são consideradas, em bloco, hipóteses sensíveis. A lógica é clara: o desvio de recursos públicos costuma passar pelo sistema financeiro, e o padrão das operações pode denunciar a tentativa de mascarar superfaturamento ou corrupção.

A carta do Banco Central também dedica espaço específico aos consórcios, apontando, entre outros exemplos, consorciados com número de cotas incompatível com a renda, crescimento abrupto na quantidade de cotas de um mesmo participante, lances desproporcionais à capacidade econômica, pagamentos antecipados de muitas prestações, compra de cotas já contempladas seguida de quitação rápida e uso de documentos falsos na adesão. A mensagem é que o ambiente de consórcio pode ser instrumentalizado para dar aparência lícita à circulação de valores de origem ilícita.

Em nível internacional, o texto normativo lista operações com pessoas ou instituições situadas em países que não aplicam adequadamente as recomendações do Gafi, em paraísos fiscais ou em jurisdições associadas à prática contumaz de lavagem de dinheiro, especialmente quando não houver clareza sobre a fundamentação econômica da operação.

Pagamentos de importação e recebimentos de exportação incompatíveis com o porte da empresa, pagamentos a terceiros estranhos às transações comerciais, transferências unilaterais sem justificativa, disponibilidades mantidas no exterior sem lastro, exportações e importações fictícias ou superfaturadas/subfaturadas, discrepâncias documentais em cartas de crédito e movimentações inconsistentes em programas de repatriação de recursos aparecem como exemplos de condutas que exigem atenção.

Outros blocos tratam de crédito e investimento contratados no exterior, investimento externo direto e de portfólio. O Banco Central menciona empréstimos no exterior com juros ou prazos destoantes do mercado, série de financiamentos consecutivos sem quitação clara dos anteriores, quitação com recursos de origem não explicada e garantias desproporcionais.

Do lado do capital estrangeiro no Brasil, apontam-se como suspeitos aportes que retornam rapidamente ao exterior, remessas de lucros e dividendos em valores incompatíveis com o investimento, fluxo intenso de recursos de um mesmo investidor para várias empresas ou de vários investidores para uma única sociedade, além de aportes desproporcionais ao porte da empresa ou à capacidade dos sócios.

Por fim, a norma alcança o comportamento de empregados e representantes das instituições financeiras. Mudanças abruptas no padrão de vida sem causa aparente, alterações inusitadas no resultado operacional de correspondentes, realização de negócios à margem dos procedimentos formais, bem como o fornecimento de auxílio ou informação a clientes com o objetivo de burlar o programa de prevenção, fracionar operações ou superar limites regulatórios são descritos como situações que podem indicar envolvimento interno com práticas ilícitas.

Do ponto de vista prático, todas essas hipóteses funcionam como parâmetros para a estruturação de sistemas de controles internos, inclusive informatizados, de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

Cabe às instituições, ao identificar operações enquadradas nesses padrões ou em outros que, por experiência ou análise de risco, revelem atipicidade relevante, proceder à comunicação por meio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras (Siscoaf). Não se trata de afirmar, de antemão, a existência de crime, mas de registrar formalmente a ocorrência de indícios para que os órgãos de inteligência financeira e investigação possam aprofundar a análise.

Do ponto de vista opinativo, esse detalhamento normativo reforça duas mensagens centrais para a advocacia e para o mercado: primeiro, que a fronteira entre a “movimentação descuidada” e o comportamento que projeta o cliente para o radar do Coaf é, hoje, extremamente tênue; segundo, que programas eficazes de compliance e educação financeira tornaram-se instrumentos de proteção jurídica tão importantes quanto qualquer blindagem contratual.

Em um ambiente em que praticamente todas as operações são registradas, o desconhecimento dos padrões de risco deixou de ser desculpa para tornar-se, ele próprio, um fator de vulnerabilidade.

Carta-Circular nº 3.542/2012