Entre a Autonomia e o Controle: Dez Anos de Debate Sobre o Poder Investigatório do Ministério Público

Por Jefferson Freire

Em maio de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou uma das teses mais marcantes da última década em matéria de persecução penal: o reconhecimento de que o Ministério Público pode promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias individuais do investigado e observadas as reservas de jurisdição. A tese, firmada no julgamento do RE 593.727 (Tema 184 da repercussão geral), teve como relator o ministro Cezar Peluso e como redator do acórdão o ministro Gilmar Mendes, e deu origem ao que hoje conhecemos como Procedimento Investigatório Criminal (PIC).

 

O entendimento inaugurou uma nova era institucional no sistema acusatório brasileiro. Até então, prevalecia a ideia de que a polícia judiciária detinha o monopólio da investigação penal, cabendo ao Ministério Público apenas requisitar diligências e instaurar inquérito policial. Com o precedente de 2015, o Parquet passou a poder conduzir, diretamente, investigações criminais, desde que documentadas, comunicadas ao Judiciário e respeitadas as prerrogativas da advocacia e os direitos fundamentais dos investigados.

Da teoria à prática: os primeiros excessos e a reação institucional

A ampliação da competência investigatória ministerial, entretanto, trouxe consequências inesperadas. Munidos da possibilidade de investigar, denunciar e pleitear condenações, alguns membros do Ministério Público Federal passaram a atuar, em certos casos, à margem dos princípios da imparcialidade e da ampla defesa, assumindo um protagonismo processual que extrapolava os limites da própria acusação.

Surgiram denúncias de investigações secretas, conduzidas sem ciência dos investigados, e de prisões midiáticas, marcadas mais pela espetacularização do que pela legalidade. Escritórios de advocacia foram alvo de mandados genéricos de busca e apreensão, em afronta direta ao artigo 133 da Constituição Federal, que consagra a inviolabilidade do advogado no exercício da profissão. Tais práticas suscitaram preocupações legítimas quanto ao equilíbrio entre a necessidade de combate à criminalidade e a preservação das garantias individuais.

O próprio Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) reagiu a esses desvios. Em janeiro de 2018, editou a Resolução nº 183, estabelecendo parâmetros claros para o PIC, como o dever de facultar ao investigado o direito de apresentar informações e de ser acompanhado por defensor. Contudo, na prática, o investigado raramente é notificado da existência do procedimento, o que compromete o exercício pleno da defesa e gera uma espécie de acusação surpresa quando o caso vem a público.

A consolidação jurisprudencial: das ADIs às novas balizas do controle judicial

Em 2024, quase dez anos após o precedente original, o Supremo voltou a se debruçar sobre o tema ao julgar as ADIs 2.943, 3.309 e 3.318, reafirmando a constitucionalidade da investigação criminal ministerial, mas agora com novas condicionantes e mecanismos de controle.

O Tribunal consolidou a seguinte tese: o Ministério Público dispõe de atribuição concorrente para investigar, desde que comunique ao juiz competente a instauração e o encerramento do procedimento, observe os mesmos prazos dos inquéritos policiais, e submeta as prorrogações à autorização judicial. Também ficou assentada a aplicação do artigo 18 do CPP ao PIC e a necessidade de evitar duplicidade de investigações mediante distribuição por dependência.

O julgamento incorporou ainda um elemento novo: a determinação, imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Honorato e Outros vs. Brasil, de 2023), de que o Estado assegure ao Ministério Público recursos humanos e financeiros para investigar mortes cometidas por agentes policiais, fortalecendo a função de controle externo da atividade policial.

No mesmo sentido, ao apreciar as ADIs 6.298, 6.299 e 6.305, em face da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o STF determinou que todos os atos praticados pelo MP como condutor de investigações penais se submetem ao controle judicial, devendo os procedimentos ser encaminhados ao juiz natural no prazo de 90 dias. Assim, mesmo reconhecendo o sistema acusatório no artigo 3º-A do CPP, a Corte reafirmou a necessidade de fiscalização jurisdicional constante.

Entre o texto constitucional e a hermenêutica: a controvérsia doutrinária

O debate, contudo, permanece longe de ser pacífico. Delegados e juristas sustentam que o artigo 144, §1º, IV, da Constituição é taxativo ao atribuir à polícia judiciária a competência para apurar infrações penais, exceto as militares. Para o delegado José Adonias Gomes dos Santos, o silêncio da Constituição quanto à investigação ministerial é eloquente, revelando intenção de limitar o poder investigatório do MP à requisição de diligências.

Em contraponto, o procurador de Justiça Cezar Roberto Bitencourt já havia afirmado, ainda em 2007, que a Resolução 181/2017 do CNMP, que regulamentou o PIC, seria inconstitucional por violar o artigo 22, I, da Constituição, que reserva à União competência exclusiva para legislar sobre processo penal. A seu ver, o CNMP “criou” uma modalidade de investigação não prevista em lei, extrapolando sua competência regulamentar.

Entretanto, parte expressiva da doutrina e da jurisprudência não compartilha desse entendimento. Conforme destaca o procurador municipal Roberto Wagner Lima Nogueira, atos normativos de órgãos de controle constitucional — como o CNMP e o CNJ, podem ter natureza de atos normativos primários, pois retiram sua validade diretamente do texto constitucional. Nesse contexto, a Resolução 181/2017 seria constitucional e autoexecutável, derivando seu fundamento do artigo 129, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, que atribuem ao Ministério Público a função de requisitar diligências e exercer o controle externo da atividade policial.

A disputa retórica e a hipocrisia acadêmica

O debate entre Ministério Público e Polícia Judiciária extrapolou o plano jurídico e adentrou o terreno simbólico. De um lado, setores da polícia afirmam que o MP invade competências constitucionais; de outro, membros do Parquet acusam as corporações policiais de resistência corporativista e de temer o controle externo efetivo.

Como lembram os delegados Nilton César Boscaro e Higor Vinícius Nogueira Jorge, a requisição de instauração de inquérito policial deveria ser vista apenas como uma “solicitação”, sujeita ao juízo de conveniência do delegado. Tal interpretação, entretanto, contraria frontalmente o texto do artigo 129, VIII, da Constituição, que confere ao Ministério Público poder de requisição, e não mera sugestão, de diligências investigatórias.

Trata-se, como bem observou o ministro Luís Roberto Barroso, de questão de imperatividade normativa: “As normas constitucionais contêm o atributo típico das normas jurídicas em geral, a obrigatoriedade, e sua inobservância acarreta sanções e controle coercitivo”. Assim, não há hierarquia entre instituições, mas supremacia da Constituição e de suas disposições.

Dez anos depois: autonomia, limites e o papel do Judiciário

Passados dez anos desde o emblemático RE 593.727, o sistema jurídico brasileiro parece ter atingido uma síntese: o Ministério Público pode investigar, mas não sem controle. O Judiciário exerce função moderadora, garantindo que a busca pela verdade real não se converta em violação de direitos fundamentais.

A jurisprudência atual é inequívoca: o MP não detém monopólio investigatório, mas tampouco é refém da polícia. O equilíbrio entre a autonomia funcional e o controle jurisdicional tem sido o desafio central dessa construção jurisprudencial, e também o seu mérito.

Como destacou recentemente o ministro Luiz Edson Fachin, ao reafirmar a tese nas ações movidas pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), “a atuação do Ministério Público não coloca em risco o devido processo legal, desde que observados os prazos e o controle judicial”.

Em síntese, a trajetória intertemporal das investigações ministeriais, entre 2015 e 2025, reflete o amadurecimento de um Estado que busca equilibrar eficiência investigativa e garantismo penal, combatendo tanto a impunidade quanto os abusos de poder. Resta, agora, que a prática institucional corresponda à promessa constitucional: investigar com legalidade, acusar com responsabilidade e punir com justiça.

Referências:

  • STF, RE 593.727/MG, Rel. Min. Cezar Peluso, Red. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2015, DJe 8.9.2015 (Tema 184).

  • STF, ADIs 2.943, 3.309, 3.318 e ADIs 6.298, 6.299, 6.305.

  • CNMP, Resolução nº 181/2017 e Resolução nº 183/2018.

  • CIDH, Caso Honorato e Outros vs. Brasil, Sentença de 27.11.2023.