No atual estágio de amadurecimento do Direito Penal brasileiro, a revisão criminal deixou de ser um mero instrumento de reanálise de mérito para assumir papel fundamental na preservação da coerência e da legitimidade do sistema de justiça.
Mais do que uma medida excepcional, ela se revela como verdadeiro mecanismo de correção sistêmica, destinado a garantir que decisões condenatórias não sobrevivam quando desafiadas por inconsistências jurídicas ou contradições entre julgados proferidos sobre o mesmo conjunto fático-probatório em esferas distintas.
Com os novos contornos da jurisprudência tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem reconhecido que, embora as esferas penal, civil e administrativa sejam, em regra, independentes, essa separação não pode ser interpretada de modo absoluto, a revisão criminal passa a assumir uma nova feição.
Isso porque ela pode ser utilizada também para preservar a unidade do Direito e a coerência da prestação jurisdicional, afastando condenações incoerentes, ou seja, a autonomia das instâncias deve ceder espaço ao imperativo de racionalidade sistêmica sempre que a divergência entre julgados puder comprometer a integridade do sistema jurídico e a credibilidade da jurisdição penal.
O entendimento firmado no AgRg nos EDcl no HC 601.533/SP, de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, é emblemático: “a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias.” Essa diretriz reflete uma visão de Direito que não tolera incongruências entre pronunciamentos judiciais sobre o mesmo fato.
Não é admissível que um mesmo ato seja considerado doloso na esfera penal e culposo na cível, ou vice-versa, sob pena de violação à lógica jurídica e aos princípios basilares da culpabilidade e da segurança jurídica.
O STJ, no RHC 173.448/DF, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, reforçou essa orientação ao reconhecer que a ausência de dolo reconhecida na esfera cível deve repercutir na análise penal do mesmo fato.
Isso porque o elemento subjetivo da conduta, quais sejam, dolo ou culpa; integra a própria estrutura do tipo penal e sua negação, em juízo anterior, interfere diretamente na tipicidade do delito. Assim, quando o juízo cível afirma categoricamente que não há dolo na conduta do agente, a condenação penal baseada nesse mesmo fato torna-se juridicamente insustentável.
O Supremo Tribunal Federal, em decisões recentes, como na Reclamação 57.215/PR, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, também tem reconhecido a existência de uma independência mitigada entre as esferas.
Para a Corte, a compreensão de fatos fixada definitivamente no espaço do subsistema penal pode irradiar efeitos sobre o âmbito administrativo ou cível, e, inversamente, decisões administrativas ou de improbidade que reconheçam a inexistência de dolo ou de autoria devem ser consideradas como elementos de persuasão relevante na análise criminal.
Em outras palavras, o STF reafirma que o Direito é um sistema único, e a coerência entre suas partes é condição essencial para a manutenção da justiça e da credibilidade institucional.
Nesse sentido, a revisão criminal cumpre uma função que vai além da mera reavaliação do caso concreto. Ela atua como garantia fundamental da integridade do sistema penal, permitindo ao Tribunal reexaminar a correlação entre as provas e o Direito aplicado, a fim de restaurar a coerência entre a verdade processual e a verdade material emergente dos autos.
Ao permitir a revisão de decisões condenatórias injustas ou contraditórias, o Poder Judiciário reafirma que a legitimidade da jurisdição penal está intrinsecamente vinculada à coerência, à racionalidade e à unidade do ordenamento jurídico.
Admitir que uma mesma conduta seja simultaneamente dolosa e culposa, conforme a esfera em que é julgada, seria abandonar o ideal de racionalidade que sustenta o Direito Penal moderno. Como já advertiu o ministro Rogério Schietti Cruz no REsp 1.689.173/SC, “a jurisdição criminal não pode impor responsabilidade penal além da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo inconsequente, de cariz meramente simbólico.”
Assim, a ação revisional surge como a via legítima para restabelecer a força normativa da lei e corrigir o descompasso entre o que foi decidido e a verdade que emerge das provas. Em um Estado Democrático de Direito, a revisão criminal é mais do que um instrumento processual: é expressão do compromisso ético e constitucional da justiça penal com a verdade, a liberdade e a dignidade humanas.
A coerência entre as decisões judiciais não é uma questão de conveniência, mas de justiça substancial. O Direito, enquanto sistema de valores e normas, exige harmonia interna e respeito à razão. A revisão criminal, ao permitir o reexame de decisões que rompem essa harmonia, reafirma o papel do Judiciário como guardião não apenas da legalidade, mas também da consistência e da racionalidade do próprio sistema jurídico.